domingo, 18 de julho de 2010

O Estatuto poético do ministro Elói

O Estatuto da Igualdade Racial, que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionará nesta terça-feira (20/07), nasce precocemente envelhecido. Depois de 122 anos em que se esperava do Estado brasileiro políticas públicas visando completar a Abolição não concluída, o que temos é uma Lei que, mesmo seus defensores mais entusiasmados, reconhecem tratar-se apenas de mais um marco legal, na melhor das hipóteses.

Quanto aos críticos – da insuspeita ex-ministra Matilde Ribeiro, às lideranças negras com independência de partidos e do Governo para vocalizar as divergências com os métodos utilizados - todos são unânimes em objetar: fruto de um acordo fora de hora, impulsionado por interesses eleitorais e com inspirações óbvias do Palácio do Planalto e de Lula – a quem interessaria deixar o Estatuto como um “legado para os negros” – o texto é tímido, pífio mesmo, contraditório em muitos pontos.

Apresentado pelo seu propositor, o senador Paulo Paim (PT-RS), como uma segunda Lei da Abolição, em muitos pontos representa, inclusive, um retrocesso até mesmo em termos da legislação vigente, como no caso da Política de Saúde da População Negra, alvo da "tesoura de Demóstenes", já regulamentada em normas do próprio Ministério da Saúde.

É pouco, muito pouco.

Entretanto, é o que temos. Ou seja: mais uma Lei - retórica na forma, simbólica no conteúdo.

Sem mais "leis para inglês ver"

O questionamento das lideranças que chegaram a pedir o veto ao Presidente, na essência, se refere precisamente a isso: após mais de um século é justo que não queiramos mais leis simbólicas, lançadas para o deleite político-eleitoral de quantos desejem cenas explícitas de marketing, mas de um ordenamento jurídico que seja levado a prática e que sirva de instrumento para botar um fim aos séculos de desvantagem acumulada.

Por isso mesmo, a atitude das lideranças é absolutamente legítima, sob qualquer aspecto.

O que não é legítima - nem democrática - é a postura adotada pelo ministro chefe da SEPPIR, Elói Ferreira de Araújo, deixado no cargo pelo ex, deputado Edson Santos (PT-RJ), para cumprir um mandato tampão de oito meses, não por méritos próprios, mas apenas para cumprimento da orientação do Presidente da República de não se promover mudanças de relevo na Esplanada.

O bloco do amém

Além de liderar um acordo sem nenhuma transparência, em que levou à Brasília com passagens pagas apenas os que, de antemão, já sabia, lhe dariam o “amém” para justificar o acordo e a tudo o que fizesse ou decidisse, Araújo tornou-se o principal responsável pela orientação que passou a ser implementada pela Coordenação de Comunicação. Desde abril, com o início do mandato tampão, esta Afropress não obtém respostas a pedidos de entrevista.

Perguntas enviadas são ignoradas e telefonemas não são atendidos. Nem resposta, nem satisfação, o que - além de tudo - revela uma monumental falta de profissionalismo. A má vontade dos novos mandatários da SEPPIR seria motivada pela independência e apartidarismo de Afropress.

O ministro teria ficado contrariado com o fato do veículo ter aberto espaço, tanto para as vozes favoráveis, quanto para as vozes contrárias ao Estatuto. Ou seja: por buscar fazer o seu papel de mídia independente e apartidária.

O ministro chefe parece ter adotado como modelo de gestão, o dos comissários sob o stalinismo: prefere rodear-se apenas das vozes dispostas a bajular "a grande obra de articulação política que teria sido as negociações que terminaram em acordo com o DEM". Ignora mesmo aqueles que, no coletivo de dirigentes - como o Secretário de Ações Afirmativas Martvs Chagas - consideraram que o momento para a negociação do Estatuto no Senado não era o mais adequado.

Documento poético

Não por acaso, em entrevista à outras mídias, chamou o Estatuto da igualdade Racial de “fantástico”, “bonito, “poético”. Disse que “o país estará escrevendo uma nova página que vai ficar marcada para sempre, consolidando em definitivo a democracia com a inclusão dos segmentos que foram historicamente invisibilizados e desapropriados das possibilidades de fruir dos bens econômicos, culturais e sociais que sempre tiveram disponíveis, mas impedidos aos negros”.

Ora, quem conhece um mínimo do Estatuto e sobretudo a tradição das elites brasileiras de fazer “Leis para inglês ver” - como foram as Leis do Ventre Livre, do Sexagenário, a Lei Áurea, a Lei 10.639/2003 e outras tantas -, sabe que o ministro viaja.

Desconectado da realidade, acometido de um surto de alienação, ele discursa sem se dar conta de que, ao fazê-lo, desrespeita aos que consideram o Estatuto aprovado muito pouco para o que se esperava e muito aquém do necessário.

A montanha pariu um rato

A montanha pariu um rato, metáfora perfeita para indicar a nossa decepção perante um resultado que frustrou as expectativas da maioria, cabe como uma luva para o caso.

A orientação oficial do ministro passou a se refletir na página da SEPPIR, executada pela sua coordenadora de comunicação. Lá, é possível conhecer as opiniões sobre o Estatuto, mas apenas de quem é favorável, em material, se possível, feito sob encomenda e editado para fazer crer ao distinto público a grande obra operada.

É o caso das manifestações de Abdias do Nascimento e de Frei David, da Rede Educafro, que após entrevistas em que expressavam sua decepção pelo Estatuto aprovado, passaram a ocupar espaço no site da SEPPIR com opiniões favoráveis e fotos. O que aconteceu entre as entrevistas é matéria que só um e outro podem explicar. Ou, quem, sabe Freud, sabe-se lá!

O que o debate – no período anterior e no pós aprovação e pré-sanção - demonstrou, contudo, foi algo mais importante do que o próprio projeto, que tem as digitais do senador Demóstenes Torres – o mesmo para quem o estupro de negras na escravidão foi consentido.

O Movimento Social Negro brasileiro, lamentavelmente, funciona, com as exceções que também ficaram demonstradas, como um lobbie disperso, sem articulação, nem lideranças. Com um pé na Academia e outro nos Partidos, não tem agenda nem programa e funciona de acordo com os interesses e a pauta de quem tem visibilidade ou manda nessas instituições.

Querem um negro simbólico, tanto objeto de estudos acadêmicos - o que rende Bolsas e engorda currículos - quanto útil para as campanhas eleitorais, na medida em que sirva para atrair votos.

Os que estão fora desses espaços não tem nem união, nem articulação, nem mesmo conhecimento do que se passa em Brasília e nos bastidores do Poder.

Nova jornada

Exceção a esse comportamento de manada dirigida, deve ser feita, por questão de justiça, ao Movimento Negro Unificado (MNU), ao Coletivo de Entidades Negras (CEN), a resistência quilombola, e a entidades como a UNEAFRO/Brasil.

Quanto a SEPPIR - criada como reivindicação histórica do Movimento Negro já no primeiro Governo Lula - o mandato tampão do ministro Elói Ferreira ficará marcado como aquele que, além de perder o apoio de expressivas parcelas do movimento negro, provocou até mesmo um racha na bancada de parlamentares negros de apoio ao governo, como ficou evidente com o pedido do deputado Luiz Alberto da Bahia, para que o presidente vete o projeto.

Sancionado o projeto aprovado pelo Senado nesta terça-feira, começa a nova etapa e nesta nova etapa será fundamental que todos os que lutam por igualdade, sigam lutando nas ruas e no Parlamento para fazer com que o texto legal, deixe de ser um rosário de generalidades teóricas - apenas para agradar ruralistas e seus representantes - e adquira o conteúdo que precisa ter para, de fato, garantir a inclusão da população negra no universo de direitos e o acesso à cidadania.

No exato momento em que começarem as comemorações pela sanção nesta terça-feira, do "Estatuto poético" do ministro, devemos dizer, contrariando "o coro dos contentes" que o mesmo é insuficiente, não nos basta.

E a melhor forma de fazê-lo é iniciando já na saída da cerimônia do Palácio do Planalto, uma nova jornada para emendá-lo e transformá-lo em um Estatuto da Igualdade com cotas no acesso à Educação, ao emprego, defesa dos territórios quilombolas, políticas públicas no acesso à saúde e a todos os espaços a que temos direito, e de um Fundo de Reparações que garanta recursos para a adoção de políticas públicas em todos os níveis.

Mesmo porque, nada contra os "arroubos poéticos" do chefe da SEPPIR, porém, a luta pela igualdade no Brasil vai continuar com o ministro, sem o ministro ou contra o ministro.

São Paulo, 18/7/2010

Dojival Vieira
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