segunda-feira, 12 de julho de 2010

"Os Escravos dos Santos"

Em entrevista ao ISER, Kelly Hayes, que se define como estudiosa de religiões, fala um pouco sobre a produção do documentário “Slaves of the Saints” (Os Escravos dos Santos). O filme é um dos resultados da pesquisa realizada em dois terreiros do Rio de Janeiro sobre praticantes de religiões afro-brasileiras.

Você é professora em Estudos Religiosos na Universidade de Indiana. Conte-nos um pouco da sua formação, dos seus interesses acadêmicos em estudos da religião como antropóloga.

Na verdade, fiz meu doutorado na Universidade de Chicago em uma disciplina chamada History of Religions. Aqui no Brasil não existe uma correspondente. Apesar de eu usar métodos de Antropologia (como pesquisas de campo, entrevistas orais), me vejo menos como antropóloga e mais como estudiosa de religiões, de forma comparativa e mais abrangente. A religião é um campo da produção humana que está intimamente ligada à criação de um mundo significativo, e este processo todo é constante, opera em níveis diferentes, tanto em um mais abstrato - de dar sentido às grandes questões do ser humano -, quanto em outro mais pragmático, de simplesmente compreender o fluxo de eventos de uma determinada vida individual. Estou muito mais interessada em religião no sentido de bricolage, segundo conceito de Lévi-Strauss, e neste processo, me interessa bem mais o contexto do indivíduo do que a religião com suas formas organizadas de instituição e teologias. O que me interessa é como as pessoas usufruem os recursos que a religião lhes oferece (crenças, práticas, maneiras de se entenderem e de se relacionarem entre si) para compreender o mundo e para nele intervir, de tal forma que lhes seja possível transformar as próprias condições de vida. Assim, meus interesses acadêmicos se localizam mais na fronteira entre o indivíduo e a sociedade.


Como surgiu a ideia de fazer o filme?

Quando eu fiz a minha pesquisa de campo no Rio (de 2000 a 2002, e durante períodos mais curtos entre 2002 e 2008), inicialmente, eu nem pensava em fazer um filme. Usava bastante vídeo e fotografia para gravar cerimônias e eventos da vida cotidiana dentro dos dois terreiros em que trabalhei. Mas a minha proposta na época era usar estes recursos mais para entender o que acontecia durante os ritos e as preparações que os acompanhavam. Depois de oito anos, eu já tinha acumulado quase 80 horas de vídeo e centenas de fotos, e esse material todo me deixou aflita. Eu participava muito da vida cultural em Chicago, cidade em que nasci, e integrava uma turma de artistas, fotógrafos e cineastas. Enfim, tinha amigos que, naquele momento, me incentivaram a fazer uso desses registros. Em 2006, a minha namorada Catherine Crouch, que é diretora e roteirista de filme, veio ao Brasil para me ajudar a gravar entrevistas com várias pessoas. Foi ela quem conseguiu extrair daquele material todo um fio organizador que conduziu o filme.

Como foi o processo de pesquisa e filmagem? Houve alguma modificação na ideia original por conta do que vocês presenciaram durante a filmagem?

Pelo fato do processo não ter sido planejado, nós tivemos que usufruir o que tínhamos. Como eu havia filmado cerimônias desde 2000, nosso acervo era riquíssimo em termos do que se chama de “B-roll” ou “background footage.” Quando a idéia de fazer um filme se materializou, ficou claro que faltava alguma coisa para dar sentido e continuidade às cenas que nós já tínhamos. Voltei varias vezes ao Brasil para filmar, e a Catherine me acompanhou numa destas viagens e me ajudou a gravar as entrevistas que nos permitiram organizar tanto material de forma mais esclarecedora. Fizemos pelo menos três versões diferentes do filme antes de chegar à versão final. O processo demorou quase quatro anos. Mandou cada versão para pessoas diferentes, entre cineastas, amigos e acadêmicos. E fomos reorganizando o filme de acordo com os comentários e críticas.

O que dificultou muito nosso trabalho foi a minha preferência de não ter um narrador explicando tudo. Queria que os participantes falassem por si mesmos, ainda que às vezes dizendo coisas contraditórias ou até confusas. Isso era algo que eu não queria abrir mão, mesmo depois dos comentários nos aconselhando a acrescentar uma narração para esclarecer certas idéias e ajudar o espectador a entender melhor ao que assiste. Mas eu não queria um mediador que atenuasse essas contradições, colocando tudo numa ordem perfeita - aquela voz sábia que não permite ao espectador enfrentar as ambigüidades e inconsistências da vida religiosa como é praticada no dia-a-dia. Tampouco queria colocar uma interpretação da religião na boca de um narrador. Porque tanto as pessoas quanto a religião em si são contraditórias. E os motivos atrás de qualquer prática religiosa nem sempre são óbvios ou desinteressados. Além disso, a minha interpretação da religião não é a mesma das pessoas no filme. A ausência do narrador permite que essas discordâncias fiquem mais evidentes, ao mesmo tempo em que exige do espectador entender e decidir por si mesmo. Isto pode perturbar pessoas que querem tudo explicado, sem o esforço de pensar. Porém eu acredito que muitas vezes a narração acaba simplificando e até ocultando um lado importantíssimo da religião.

Por fim, por falta de algumas ideias que não foram explicadas de uma forma adequada pelos entrevistados, optei por umas explicações que aparecem escritas no começo do filme. Sempre tive mente o fato de o projeto tentar ser didático, feito para finalidades educacionais. Justamente por isso, organizei-o em capítulos, igual a um livro. A ideia é que professores possam usar o filme inteiro ou em capítulos selecionados de acordo com as suas necessidades. Então, os capítulos são mais ou menos independentes, apesar de ter uma progressão no filme inteiro em que cada capítulo funciona como uma base para os que seguem.

A pesquisa que originou o documentário trouxe outras descobertas que não foram inseridas no vídeo final? Se sim, qual o motivo de não terem sido incluídas? Quais descobertas foram essas?

Tem tantas coisas da pesquisa que acabou não entrando no documentário, nem no livro que acompanha o filme. Acho que o processo de fazer qualquer produção acadêmica, ou mesmo artística, seja filme ou livro, é um processo de concentrar e focalizar, de fazer escolhas. Pelo menos para mim, é um processo de peneirar até chegar ao que você acha mais importante ou interessante. O livro fala muito mais da pomba gira em termos históricos, sociológicos e até teóricos do que o filme. Mas o filme permite visualizar estas ideias e práticas de uma maneira muito mais imediata e sensual. E o sensual é parte importantíssima nas religiões afro-brasileira. E eu diria até de todas as religiões.

As manifestações exibidas no documentário acontecem apenas em terreiros de religiões institucionalizadas (candomblé, umbanda) ou em locais de atendimento ao público que não estão ligados a terreiros?

Ambos.

No filme são mostradas incorporações de outras entidades além de Pomba Gira e Exu?

Sim, mas o alvo do filme são as crenças e práticas ligadas à Pomba Gira e ao Exu, entidades que são muito populares e polêmicas aqui no Rio. O que eu queria mostrar é exatamente a ambiguidade destas entidades, que tanto podem fazer bem quanto podem fazer mal. É isso, eu creio, que explica em parte a popularidade dessas entidades.



O documentário será exibido no ISER, no dia 14 de julho, na primeira sessão do Cinedebate ISER.